A intrigante lenda da Papa Joana

(Representação visual gerada pela IA Midjourney)

São conhecidos diversos exemplos históricos de mulheres que se passaram por homens para poderem ter acesso a espaços e funções tratados como privilégios masculinos. Eram casos de mulheres que precisavam ser especialmente determinadas e corajosas para lidar com a segregação que impunha uma hierarquia de gênero estabelecendo rigorosos limites para elas.

Uma dessas histórias que recebeu bastante atenção aborda a situação da mulher que teria comandado a Igreja Católica durante dois anos na Idade Média, sob o nome de João VIII, mas que seria, na verdade, a Papa Joana.

Diz a versão mais comum sobre a papa feminina que Joana era uma mulher de talento e erudição impressionantes, além de possuir uma fé fervorosa. Acreditava-se que um amante foi o incentivador da ideia de que ela deveria se disfarçar de homem para ingressar na vida sacerdotal como padre, sugestão que ela acolheu e que a fez adotar uma identidade masculina falsa. Ela teria sido capaz de enganar muitas pessoas com este fingimento e conseguiu ascender na hierarquia eclesiástica de maneira impressionante, chegando ao ponto incrível de ser aclamada para liderar a Igreja Católica como pontífice.

Durante seu papado, ninguém jamais questionou ou suspeitou de seu verdadeiro gênero até um fatídico evento. Após uma tempestade de gafanhotos em 854, o Papa João VIII se dirigiu ao povo de Roma para conceder sua bênção. Contudo, em meio à procissão, começou a sentir intensas dores abdominais. Ao cair, foi revelado que o Papa João era, de fato, uma mulher que estava em trabalho de parto. A descoberta causou grande alvoroço entre a multidão, que, em sua ira, atacou Joana e a infeliz criança, que forram enterradas na rua mesmo. Foi dito que o vexame da situação foi tão grande que a Igreja Católica decidiu tornar o assunto proibido, além de buscar encobrir os fatos destruindo qualquer vestígio sobre a existência da mulher que se tornou papa.

Acontece que essa história impressionante só começou a circular em crônicas mais de duzentos anos após os alegados fatos tão incomuns. Inicialmente, nem sequer davam um nome para o suposto papa falso, mas, posteriormente, surgiu a identidade de João VIII, e o nome da mulher também variava conforme a versão contada, até que passou a ser comum identificar a impostora como Joana já no século 14.

Até entre membros do clero, havia quem acreditasse na história, mesmo diante de uma série de informações desencontradas, versões com discrepâncias e inconsistências históricas. Somente no século 16 passou a ocorrer a preocupação com a verificação factual da história, quando estudiosos começaram a atestar que era improvável que uma mulher tivesse ocupado o trono papal naquele período. David Bondel, um reformador protestante dedicado aos estudos da história do cristianismo e da Igreja Católica, elaborou uma minuciosa investigação sobre a narrativa a respeito da mulher Papa e concluiu que sua invenção surgiu como uma forma de satirizar o papado, sobretudo João XI, que foi consagrado Pontífice aos 20 anos de idade por intervenção de sua poderosa família e que era comandado pela mãe, a poderosa senatriz Marozia, que, dessa forma, comandava na prática a Igreja Católica ao longo do tempo quem que o jovem exercia ao menos oficialmente o pontificado entre 931 a 936. Outra possibilidade satírica poderia se referir ao Papa João XII, que tinha um conhecido e criticado romance com uma amante chamada Joana, tida como uma pessoa altamente influente sobre o líder da igreja.

Os registros e fontes da Igreja Católica durante boa parte da Idade Média apresentam diversas precariedades que deram margem para que a crença na existência da Papa Joana perdurasse, e não faltam especulações que exploram essa fragilidade. Hoje praticamente não se considera mais a possibilidade da veracidade da existência da Papa Joana, mas é ainda uma história que mexe com a imaginação e mobiliza suposições.

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