Vende-se esposa: A prática inglesa dos leilões de mulheres como forma de realização de divórcios

(Representação visual gerada pela IA Midjourney)

Nem sempre os relacionamentos jurados até a morte sobrevivem enquanto os cônjuges estão vivos. Nesse caso os casamentos são desfeitos com consequências que podem ser brandas ou dramáticas a depender de cada caso e situação. Mas na Inglaterra nos séculos 17 e 18 deram um jeito estranho para lidar com uma relação fracassada: desfilar com a mulher amarrada na feira e então proporcionar uma negociação para que outro homem pague para levar embora.

O processo não era muito diferente da venda de um porco, uma cabra ou uma vaca. O proprietário de um bicho poderia negociar livremente o animal nos espaços de comércio popular por um preço fixo ou sujeito a acordos entre vendedor e comprador ou, dependendo do interesse pelo bem, um leilão poderia ser a via mais adequada para promover o negócio. Apesar de não ser crime, a venda de esposas não era um método de transação comercial previsto em leis comerciais ou que regulassem costumes, era socialmente condenável e mesmo assim era praticada sem a menor cerimônia. O custo de um processo convencional de divórcio era geralmente alegado como uma justificativa para que o rompimento do matrimônio terminasse na feira e entre a camada mais pobre da população essa prática era mais comum, embora endinheirados também praticassem esse comércio disruptivo.

Os ingleses não tinham protocolos formais para oficialização de casamentos através de documentações e registros próprios, apenas era prescrito que a união se realizasse entre pessoas de sexos diferentes e que as idades mínimas deveriam ser de 14 anos para o marido e 12 anos para a esposa. Por outro lado, a submissão da mulher na relação marital era regra reconhecida em normas e tribunais porque no ato do casamento o homem assumia o papel de proteção e guarda da esposa, que tinha então seus direitos individuais à disposição do marido. O eventual rompimento de uma relação reconhecida como casamento desobrigava o homem de manter ou beneficiar a mulher, então para tentar obter um mínimo de garantia como ficar com a casa ou qualquer bem era preciso batalhar para que algum juiz arbitrasse um acordo amigável. Homens e mulheres dependiam do reconhecimento legal da dissolução do casamento para contraírem novos matrimônios lícitos futuramente. Situações como essa resultavam na necessidade de arcar com despesas processuais que poderiam ser impeditivas para que muitos pudessem realizar anulações de casamentos por meio das vias regulares.

O ritual da oferta da esposa para um novo relacionamento mediante pagamento ocorria com a entrada da mulher no recinto puxada pelo homem por meio de um cabresto. Eram até comuns os casos em que os homens anunciassem previamente os negócios em jornais ou em cartazes para atraírem eventuais compradores mesmo antes do fatídico leilão público. O “produto” ficava exposto para a apreciação dos prováveis compradores e o vendedor fazia seu marketing chamando a atenção para as qualidades da mulher, apesar de ser notório que a situação não chegou a tal ponto porque o marido valorizava tais qualidades. Geralmente mercados, feiras livres e bares eram os locais para a celebração do negócio. Quem oferecesse o maior lance no final do processo “casava” com a mulher. Geralmente a mulher concordava com a situação mesmo diante da condição degradante de ser vendida feito um bem, pois não restava alternativa para se manter.  

Outra circunstância envolvendo venda de esposas era utilizado para solucionar problemas próprios da infidelidade quando a mulher tinha um amante. Nesta situação em particular o homem traído, a mulher adúltera e o amante celebravam um acordo informal por meio do qual o marido ficava com uma compensação remuneratória ou indenizatória para “liberar” a esposa infiel aos cuidados e responsabilidades do outro, que por este ato assume a condição de marido “oficial”. Também era possível que se um homem desejasse casar-se com a mulher de outro pudesse realizar uma oferta e, em comum acordo com a devida compensação material, o casamento original era desfeito para que a nova união se consumasse. Também existiam casos em que um parente da esposa infeliz realizava o pagamento por ela simplesmente porque dessa forma era mais prático colocar um fim ao casamento desgastado e tirar a mulher desse relacionamento, o que parece mais um resgaste do que necessariamente uma operação de compra e venda. As negociações poderiam em certos casos incluir os filhos do relacionamento falido, que passavam para o comprador com a mulher.

Na segunda metade do século 19 cresceram as pressões da repercussão negativa a respeito da prática de venda de esposas. Grupos e entidades ativistas passaram a realizar denúncias, atos de protestos durante a realização dos leilões, perseguições aos homens que vendiam e compravam mulheres e cobranças às autoridades para que coibissem o costume. A Lei Matrimonial de 1857 instituiu enfim formalidades para o processo de constituição dos casamentos e viabilização de divórcios, dando margem para ilegalidade da prática da venda e punição dos envolvidos no negócio. Em 1870 surgiu a legislação que permitiu que mulheres pudessem exercer atividades remuneratórias independentes dos maridos, o que diminuía a condição de dependência material e, além disso, a nova regra assegurava o direito da esposa à herança dos bens do marido e a possibilidade de constituírem patrimônio próprio.

A prática da venda de esposas na Inglaterra dos séculos 17 e 18 (com registro de casos esporádicos que chegaram a ocorrer até na década de 1910) pode parecer bizarra e chocante para os padrões sociais atuais. No entanto, era uma realidade triste que refletia as normas e desigualdades de gênero da época. A falta de mecanismos formais de divórcio e o status submisso das mulheres na sociedade contribuíam para essa prática abominável, com mulheres eram tratadas como propriedade e suas vidas à mercê dos homens. Hoje olhamos para essa prática obscura do passado como uma evidência de como as sociedades podem ser moldadas por desigualdades e práticas abusivas. A história da venda de esposas faz refletir sobre nosso progresso e lembrar que ainda temos muito a fazer para alcançar uma sociedade verdadeiramente igualitária e justa para todos.

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